Fragmentos - A insustentável leveza do ser II
O erudito inglês do século XVI Francis Bacon catalogou o processo: "Alguns livros são para se experimentar, outros para serem engolidos, e uns poucos para se mastigar e digerir".
Pode sempre explicar-se o drama de uma vida através da metáfora do peso. Costuma dizer-se que nos caiu um fardo em cima. Carregamos com esse fardo, suportamo-lo ou não o suportamos. Lutamos com ele, perdemos ou ganhamos.
A maior parte das vezes, para escapar ao sofrimento refugiamo-nos no futuro. Julgamos que a pista do tempo tem uma linha marcada para lá da qual o sofrimento presente há-de cessar.
A história é tão leve como a vida do indivíduo, insustentavelmente leve, leve como uma pena, como poeira ao vento, como uma coisa que há-de desaparecer amanhã.
Faz-me pensar naquele jornalista que andava a organizar em Praga uma campanha de assinaturas para conseguir a amnistia dos presos políticos. Tinha perfeita consciência de que a campanha não ajudaria os presos. O seu verdadeiro objectivo não era libertar presos, mas mostrar que ainda havia gente sem medo. Dava espectáculo, mas não podia fazer outra coisa. Não podia escolher entre a acção e o espectáculo. Só tinha uma escolha: dar espectáculo ou não fazer nada. Há situações em que o homem está condenado a dar espectáculo. A sua luta contra o poder silencioso (contra o poder silencioso do outro lado do ribeiro, contra a polícia metamorfoseada em microfones mudos escondidos na parede) é como um grupo de teatro a fazer frente a um exército
Não há mérito nenhum em portarmo-nos bem com os nossos semelhantes. Tereza é forçada a ser correcta com os outros habitantes da aldeia, porque senão deixaria de poder lá viver, e, até com o próprio Tomas, é obrigada a portar-se como uma esposa desvelada porque ela precisa dele. Será sempre impossível determinar com um mínimo de segurança em que medida é que as nossas relações com outrem resultam dos nossos sentimentos, do nosso amor, do nosso desamor, da nossa benevolência ou do nosso ódio, e em que medida é que estão previamente condicionadas pelas relações de forças existentes entre os indivíduos. A verdadeira bondade do homem só pode manifestar-se em toda a sua pureza e em toda a sua liberdade com aqueles que não representam força nenhuma.
Mas sobretudo: nenhum ser humano pode presentear outro com um idílio. Só o animal pode fazê-lo porque não foi expulso do Paraíso. O amor entre o homem e o cão é idílico. É um amor sem conflitos, sem cenas dilacerantes, sem evolução. Karenine ia traçando em torno de Tereza e de Tomas o círculo da sua vida fundada na repetição e também esperava o mesmo deles.
- Milan Kundera
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