[ Crônica] Consciência
A chuva fininha que batia em seu corpo franzino era o primeiro banho do dia. Em seus nove anos de vida, Sabrina já aprendera bem a se virar, se acordava com a barriga e doer de fome, era ir à rua onde há comida por toda a parte, sempre uma dona generosa disposta e lhe servir algum resto do jantar da noite anterior. Matar a fome, levar algo para casa, pois a mãe e os irmãos poderiam não ter tido a mesma sorte e assim ia vivendo sem grandes preocupações, aspirações ou questionamentos.
Não ia a casas ricas, eles nem abrem a porta. Passando por um desses bairros, havia poucas casas, lojas, depósitos e uma escola. Para em frente à escola um jovem casal, a menina é uma rainha de vestido rodado e esplendorosamente colorido, algumas partes do vestido rosa, outras amarelas, verde-claro, um interminável colorido. Ela entra com seu par e Sabrina tenta acompanhar. Entre ela e a rainha um portão e um enorme porteiro negro que a impede de entrar. Ela ainda olha o penteado da outra, dividido em duas tranças, laços e mais cores. E também o perfume, outras crianças passam por ela, coloridas e perfumadas. Ela fica parada em frente a escola e não lembra mais da fome. Pensa que aquelas crianças não são como ela, são limpas, claras, bonitas e usam roupas cheirosas. O porteiro é da sua cor e não tem dentes, mas olha de cara fechada quando ela se aproxima do portão.
Começa uma música. E o porteiro negro enorme não sai da frente do portão, ele tem uns cabelos brancos, tem uma cara de bom... Não pode entrar aí?
Não.
Mas não é uma festa?
Só para os alunos da escola.
Parece longe, nem dá para ver mais o vestido colorido e os meninos de chapéu e camisa xadrez, poderia ter ao menos uma brechinha que permitisse ver a festa. Sabrina nunca teve atração por escola, mas a escola que frequentou um dia era diferente daquela, tudo onde mora é diferente, as pessoas pareciam menos gente que as outras, não pareciam nunca ser tão limpas, nem tinham os cabelos tão bonitos, pareciam feitos de outra natureza.
Ela percebe algo de inferior em sua gente, agora via tudo, não podia entrar por ser diferente, só queria ver a festa, pensou que seria bom ser como aquelas crianças. Achou um fragmento de espelho no chão, tirou os olhos do porteiro e apanhou. Viu seus olhos de sono, a pele encardida, dentes sujos, as roupas em trapos incrivelmente sem cor. Sentiu vontade de ter outra vida, de ser outra. Percebeu que a música parara, talvez o fim da festa. E a chuva fininha continuava.
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