Criado-mudo (Conto)



      Eu a via todos os dias, era meio seu melhor amigo e maior companheiro, assim que entrava no quarto, olhava para mim e vinha em minha direção. Uma vez um livro que estava em cima de mim disse que aquela atenção era toda para ele, quem ia perder tempo com um velho criado-mudo? Pois ele se foi, foi substituído por outro livro enquanto eu continuo aqui, não me leve a mal, tive pena dele, mas também tenho meu amor-próprio. Ela era jovenzinha quando me ganhou, eu pertencia a sua tia. Fui para seu quarto que, à época era paupérrimo. Ela ficou toda feliz, passava a maior parte do dia no quarto comigo. Quando mudou de casa, me trouxe junto, sou uma relíquia da família, uma lembrança da tia falecida. E desconfio que sou uma lembrança dela também, da pessoa que foi uma dia porque agora é outra, mas eu sei que sente saudades, já a vi chorando perto de mim, hoje em dia isso é raro, ela aprendeu com a vida e com as pessoas do mundo a disfarçar o que sente e de tanto fingir para os outros, agora até ela acredita na interpretação. Bobinha, eu te conheço tão bem, Carolina! Nunca vai me enganar. 
      Ela não tinha muitos amigos, mas os poucos que tinha, eu conheci bem, vinham sempre aqui, liam, estudavam, riam, falavam besteira, eram sinceros uns com os outros. Depois ela ficava sozinha, lia, tocava violão para mim e, em minha opinião, tinha muito talento. Mas ela não se considerava feliz, queria comprar coisas que não podia, admirava vidas que só conhecia de longe. Aquela ilusão, tudo visto de longe é mais bonito. Conheceu pessoas novas que alimentavam esse sentimento. Eu fui percebendo a mudança, ela deixou de ler os livros que gostava e abandonou o violão. Então, ela começou uns cursos chatíssimos, eu nem gostava de ler os livros que trazia. E os amigos foram aumentando em quantidade e diminuindo em qualidade, os antigos não vêm mais porque ela não tem tempo e os novos são tantos que não valem por um, pois eu vejo que quando ela está triste não vem nenhum aqui e quando está feliz, debocham. Eles pensam que sou cego, dia desses ela chegou com duas amigas do trabalho, quando saiu do quarto, as amigas ficaram criticando tudo, falaram dela, da casa, do quarto e até de mim, se uma pessoa não sabe o valor de um antigo criado-mudo que sabe tantas histórias de uma família, essa pessoa não merece consideração. Sei, por exemplo, que a tia vivia bem melhor do que ela, e não me refiro a dinheiro e sim qualidade de vida. Ela, hoje, tem essa casa, que eu vi bem desde que nos mudamos, é uma bela casa, mas só vem praticamente para dormir, chega agarrada ao telefone, anda sempre com pressa, não usufrui de nada que possui e sempre querendo mais. 
      Vejo essas pessoas tão carentes, falta amor, compreensão, falta humanidade nos humanos e nada que enfiem para preencher esse vazio vai resolver. Sei que não é feliz assim, já a vi chorar aqui ao meu lado, ela contava tudo a mim e ao diário, foram humilhações, puxadas de tapete, decepções com quem menos esperava. Eu ficava apavorado com as coisas que seres humanos normais fazem todos os dias cotidianamente, é como ter que sobreviver na selva. Mas o bom era que ela não sabia guardar rancor ou imitar. No outro dia, levantava a cabeça e seguia em frente. No entanto, tudo que acontecia lá fora foi transformando-a por dentro, secando e endurecendo seu coração. Ela não se emociona mais, como antes, não chora mais, não se choca mais, nem sinal daquela menina que falava que não se encaixava nesse mundo, ela se encaixou até demais.
       Eu só não suporto vê-la sumindo aos poucos e talvez nem chegue a ver. Rosa veio aqui, fez uma arrumação no quarto, encontrou uma fotografia que ela gostava e colocou num belo porta-retrato. Relíquia de um tempo simples. À noite, ela chegou e mostrei a fotografia onde sorria junto a árvores e amigos, uma tarde em que se acharam entediados de estudar e resolveram que não valia à pena ir à aula. Porque a vida é curta demais para ser gasta sem gosto. Ela dizia isso, e lembrou, eu vi em seus olhos. E ela viu nos olhos que eu não tenho que eu estava aqui exigindo que ela retorne. Ela apenas sentou perto de mim e seus olhos ultrapassaram os limites de tempo e espaço. Por alguns segundos, entre as lágrimas eu vi a autentica Carolina. Ela disse Rosa, depois tira esse móvel velho daqui, não sei por que ainda tenho isso.
       Não é má pessoa, é o mundo que anda assim, os valores mudam, as necessidades também, não me preocupo comigo, não tenho medo de ser queimado ou devorado pelas traças, já vivi demais, perdi demais, presenciei coisas que me fizeram cansar da vida. Mesmo um móvel velho se cansa e não suporta permanecer enquanto os outros passam.
       As pessoas passam mais rápido que as coisas. Eu só queria que essa passagem fosse mais doce, mais suave, mais prazerosa pra ela e pra todos. Rosa já vem me buscar e eu não vou mais saber da vida de Carolina, só as coisas e pessoas novas vão lhe ouvir e dar conselhos. Olho minha amiga pela última vez e meu último pedido é que não de perca de vez, não se perca.











P.S( Escrevi esse conto há uns dias e hoje relendo para postar aqui não gostei muito, mas resolvi postarem consideração ao momento em que o escrevi e considerei bom).



Comentários

  1. Amei o post!!
    http://meumundorosapynk.blogspot.com.br/

    Nosso MUNDO é repleto de Beleza, Motivação, Organização, Diversão, Leitura, Escrita e muito mais!!! Que tal desbravar esse mundorosapynk?

    Beijocas

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  2. Amei o conto!
    Gatinha estou atualizando o meu canal com vídeos semanais, visite e se gostar se inscreva. Se você já se inscreveu é só continuar ligadinha no canal e no blog, beijinhos.
    Canal: http://www.youtube.com/user/isabelyrogrigues
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