Artigo sobre Bichos - Miguel Torga
Alguns artigos do meu antigo e extinto blog Beletrismos ainda são os mais lidos aqui, como são úteis para muitos estudantes de letras, vou tentar postar os que eu nunca me interessei em passar para cá, já que não pretendo mais fazer um blog específico para literatura, mas o Histórias ainda é 90% literatura.
Artigo na íntegra no word
Andreza Freitas, Anderson Clayton, Marília Fonseca de Oliveira, Daniele Cristina da Silva,
Milena Soares, Tamires Alves, Suelza Suzany Campelo
Esse estudo tem como objetivo fazer uma análise da obra Bichos, livro do escritor
português modernista Miguel Torga que apresenta 14 contos mesclando animais e seres
humanos. Baseados em estudos de Massaud Móises, traçaremos as principais
características dos personagens e da narração do autor.
Palavras- chave: Literatura Portuguesa, Miguel Torga, Bichos.
Escrito em 1940, Bichos faz parte do momento Presencista do Modernismo, fase em
que os autores transmitiam em suas obras características que tendiam ao individualismo,
mas não um individualismo gratuito e sim uma fuga para a vida junto à natureza. A
Natureza para os presencistas não era aquela bucólica dos árcades, mas uma natureza
real, que proporciona ao homem uma vida de suor e lágrimas, mas sempre repleta da
alegria de estar vivo. É na convivência com a terra que o homem descobre o valor de
todas as formas de vida e aprende a defendê-la, não por questões materiais e sim porque
reconhece a beleza que há nas coisas simples.
Miguel Torga, pseudônimo literário de Adolfo Correia da Rocha, nasceu em 1907 na
aldeia de São Martinho de Anta, na província de Trás- os – Montes, Localizado no
Nordeste de Portugal.
A escolha do Pseudônimo “Miguel” foi uma homenagem ao escritor espanhol “ Miguel
de Cervantes” autor da famosa obra “ Dom Quixote”. Torga está relacionado a um
arbusto pequeno que fixa suas raízes nas rochas, muito comum em Trás- os – Montes, e
demonstra a ligação autor com a terra.
Em 1920, Torga vem ao Brasil trabalhar na fazendo de seu tio em Minas Gerais. Após
cinco anos retorna pra Portugal.
Miguel Torga participou do grupo inicial da revista “Presença”, publicada em Coimbra
em 1927, que defendia uma literatura viva, livre que se oporia ao academismo da
literatura jornalística:
Em 1927, um grupo de estudantes (José Regio, João Gaspar Simões e
Branquinho da Fonseca) funda, edita e dirige em Coimbra a revista
literária “Presença”. Tendo por subtítulo Folha de Arte e Crítica, o
primeiro número 27 da revista, Branquinho da Fonseca abandona-lhe
a direção, secundado por Miguel Torga (então assinado Adolfo Rocha,
seu verdadeiro nome) e Edmundo de Bettecout que deixaram de
colaborar: na carta que enviaram aos demais diretores da Presença,
datada de 16 de julho de 1930, iniciaram afirmando que a Presença
que se propunha, como folha de arte e crítica, defender o direito que
assiste a cada uma de seguir o seu caminho, começou a contradizer”, e
mais adiante lembram que a “presença concebe mestres e discípulos
com aquela interpretação convencional, em que aos mestres fazem
lições para os que se reputam alunos”. (MOISÉS: 2008, p.361)
Torga, sendo panteísta, tem um sentimento ligado à natureza e ao telurismo – amor a
terra, e estas características são dispostas de maneira significativa em suas obras,
especialmente em “Bichos”, nosso objeto de estudo. Outra característica do autor
presente na obra em questão é a problemática religiosa. Essas características vão ser
tratadas posteriormente.
Segundo MOISÉS: 2010, p.367:
“Miguel Torga é sempre o mesmo homem de pés fincados na
terra transmontada, porque nela espera encontrar a explicação
para a condição humana, imediatamente transformada em sua
mente num problema teológico-existencial, armado ao redor de
indignações-chave, do gênero “quem somos?”.
Bichos é composto por contos, mais especificamente quatorze, e muitas são as
características da sua constituição formal, que atestam esse fato.
Os contos são narrativas breves e geralmente centram-se em um acontecimento ou um
episódio da vida da personagem principal como em “Morgado” em que a narrativa foca
a viagem deste com o seu dono e o fatal encontro de ambos com uma alcateia de lobos.
E mesmo quanto tem que narrar acontecimentos diegéticos ocorridos em longos
períodos como no caso de “Nero”, onde a personagem principal relembra toda sua vida
o autor condensa a narrativa de forma a abranger toda a vida da personagem em poucas
páginas.
O conto é uma narrativa breve; desenrolando uma só incidente
predominante e uma só personagem principal, contém um
assunto cujos detalhes são tão comprimidos e o conjunto do
tratamento tão organizado, que produzem uma só impressão.
(Brander, Matthews apud Goltlib: 1998 pg.60)
A obra apresenta uma característica bastante peculiar, que é a aproximação dos contos
com o texto fabular, Segundo GOTLIB (1995,p.150): “Fábula é uma historia com
personagem, animais, vegetais ou minerais, tem objetivo instrutivo e é muito breve.”
Embora o texto de Torga se aproxime das características da fábula, não se constitui
como uma, pois a instrução não é apresentada de forma direta e esta não é a intenção do
autor.
Os quatorze contos apresentam personagens principais que vivem situações ou
apresentam sentimentos muito ligados a terra e a natureza como, por exemplo, o touro
“Miura” que capturado, levado para longe de sua terra e obrigado a fazer parte de um
espetáculo que acha humilhante, devaneia com a terra natal onera rei e podia ser livre.
Entretanto não é só a ligação com natureza que é o ponto comum entre os contos, há
outros que não podem deixar de ser mencionados. “Bichos” é formado pode contos dos
quais quatro apresentam protagonistas humanos e dez apresentam como figura central
animais. Nesse ponto trava-se uma questão interessante e significativa para a obra, que
seria a utilização da antropomorfização e da zoomorfização, empregadas pelo autor para
a caracterização do perfil psicológico das personagens. Essas características estão
muito presentes na obrar e não são poucos os exemplos que constatam.
O conto “Ramiro”, por exemplo, narra à história de um pastor de ovelhas que depois de
passar vinte anos em Marão, lugar árido e silencioso, ele não consegue usar as palavras
para se expressar por isso assobia:
“Por isso, em vez de fala, usava outra linguagem: um assobio
seco, estridente, instantâneo, que atirava com a mesma violência
à cara dos interlocutores e às reses tresmalhadas. O apito, saído
dos beiços com o ímpeto dum arremesso, entrava nos ouvidos
como um punhal. Quase que fazia sangrar os tímpanos.”
(TORGA: 1940,p.48)
Depreende-se que Ramiro não se expressa como um ser humano, sua forma de
comunicação é mais assemelhada com a dos animais que usam sons para se comunicar.
Mas não é só com o assobio que Ramiro tenta se expressar, apaixonado por Rosa não
sabe manifestar seus sentimentos a não ser pelo olhar. Como podemos observar:
“Quando passava por ela, comia-a com os olhos.
Desgraçadamente, não sabia formular doutra maneira o desejo
que o roía. ”(TORGA: 1940, p. 48)
A zoomorfização esta presente também em “Madalena” e “Senhor Nicolau” que são
personagens planas.
O único conto que tem como personagem principal um humano que não apresenta
características de animais é “Jesus”, sétimo conto do livro que traz a historia de um
menino divinizado, cheio de coragem e inocência, em uma narrativa que faz várias
alusões ao texto Bíblico, caracterizando assim uma intertextualidade.
Essa intertextualidade entre os dois livros que se faz não apenas no conto “Jesus”, mas
no livro como um todo, a começar pelo prefácio iniciado com a seguinte frase: “São
horas de te receber no portaló da minha pequena Arca de Noé” (TORGA 1940, p.3)
A questão religiosa tem seu ápice em “Vicente”, ultimo conto do livro no qual o autor
traz o embate entre a criação e o criador. “Vicente”, o corvo, revolta-se contra Deus,
pois o considera injusto e tirânico. O corvo vence seu instinto de conservação que
considera humilhante. É interessante observar que o ser sem poderes sobrenaturais
consegue a divindade com s sua coragem e força de vontade.
Em Vicente além da questão religiosa, podemos observar um traço que se repetirá com
os demais protagonistas animais: Nero, Morgado, Bambo, Tenório, Cega- Rega,
Ladino, Farrusco e Miura, que é da antropomorfização, em que estes apresentam
pensamentos, emoções e em maior ou menor grau atitudes características dos seres
humanos, como por exemplo, Miura que encurralado e humilhado entrega-se a morte:
“A suprema humilhação de estar ali juntava-se o escárnio de
andar a marrar em sombras. Não. Era preciso ver calmamente.
Que a sua raiva atingisse ao menos o alvo. O espectro doirado lá
estava sempre. Pequenino, com ar de troça, olhava-o como se
olhasse um brinquedo inofensivo.” (TORGA:1940, p 55)
Os contos são todos narrados em terceira pessoa e por meio da onisciência do narrador
os pensamentos e as emoções das personagens nos são desvelados:
Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais
sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já
decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na
Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu
espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá
numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o
Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. (TORGA, :
1983. p.62)
Quanto ao discurso, embora haja a presença do discurso livre em todos os contos e o
discurso indireto esteja presente de forma marcante no conto Jesus. È o discurso
indireto livre que predomina nos contos.
Nas narrativas decorre tanto o tempo cronológico que é aquele em que a historia é
contada em sucessão cronológica, sem retomadas ao passado , que podemos constatar
na maioria dos contos como no caso de Tenório:
“Nascido duma ninhada que a senhora Maria Puga deitou
amorosamente debaixo das asas chocas da Pedrês, em doze de
Janeiro, pelas três da tarde, quando a velhota o viu sair da casca,
(...)” (TORGA :1940, p.34)
Há contos em que apresentam traços de tempo psicológicos, por meio de analepses, as
personagens retomam situações vividas por elas, aspecto que percebemos em Morgado:
“À ceia, o patrão, com cara de poucos amigos, recusara-lhe as
festas desta maneira:- Deixa-te lá de brincadeiras e enche-me
esse bandulho, que amanhã de madrugada, nem que chovam
picaretas... Tal e qual. Meteu a viola no saco, claro, e atirou-se
ao penso como pôde. Mas não sentia vontade. Tinha ainda no
estômago os tojos que despontara à tarde no monte, e andava,
sem saber porquê, de coração apertado. Além disso, aqueles
modos do dono até parece que endureciam o feno. A gente
também vive de boas palavras. E, verdade se diga, gostava do
sujeito. Desde que ele, há seis anos, na feira dos vinte e três, o
distinguira no meio dum regimento de azémolas e lhe dera uma
palmada rija na anca, simpatizara com a sua figura atarracada,
vermelha, a respirar saúde e bonomia. (TORGA: 1940, p. 24)
Torga usa uma linguagem própria do Modernismo, linguagem livre, direta, sem
enfeites e rebuscamentos e ao mesmo tempo complexa, pois nem sempre sua narração
é linear.
Assim tem –se em Bichos um retrato fiel do aspecto telúrico de Miguel Torga, nessa
obra ele apresenta um pequeno mundo em que homens e animais vivem em comunhão
com a natureza e dividem com ela suas tristezas e alegrias. Para Torga o lugar onde o
homem consegue ser feliz e descobrir sua essência é na natureza. A sociedade oprime o
que há de belo no sentimento humano, como percebe-se em Bambo, todos vivem
alienados, trabalhando o dia inteiro e descansando a noite, sem pensar que há outras
coisas mais importantes para serem vivenciadas.
‘’ Para todos os habitantes de Vilarinho, sem exceção, as noites
eram noites – escuridão apenas. E os dias pior ainda, apesar da
claridade. Ricos e pobres nem no brilho do sol reparavam.
Comiam, bebiam e cavavam leiras, numa resignação de
condenados (...) E a vida, como um fruto, estava cheia de
doçura.Mas fora preciso, para o saber, que Bambo
aparecesse...’’ (Bambo, p16)
Portanto, para Miguel Torga só o convívio com a natureza é capaz de revelar ao homem
sua verdadeira essência. Não é gratuitamente que Tio Arruda é ridicularizado pela
amizade com um sapo em frente à igreja. Torga também critica por meio dessa cena a
religião, ou como as pessoas vivenciam a religião, todas essas convenções que na
verdade não aproximam o homem de Deus, com a leitura dos contos percebe-se como
para o autor Deus está integrado com a natureza, com a terra, fazendo parte dela.
Artigo na íntegra no word
Bichos, um clássico da literatura portuguesa
Andreza Freitas, Anderson Clayton, Marília Fonseca de Oliveira, Daniele Cristina da Silva,
Milena Soares, Tamires Alves, Suelza Suzany Campelo
Resumo
Esse estudo tem como objetivo fazer uma análise da obra Bichos, livro do escritor
português modernista Miguel Torga que apresenta 14 contos mesclando animais e seres
humanos. Baseados em estudos de Massaud Móises, traçaremos as principais
características dos personagens e da narração do autor.
Palavras- chave: Literatura Portuguesa, Miguel Torga, Bichos.
Introdução
Escrito em 1940, Bichos faz parte do momento Presencista do Modernismo, fase em
que os autores transmitiam em suas obras características que tendiam ao individualismo,
mas não um individualismo gratuito e sim uma fuga para a vida junto à natureza. A
Natureza para os presencistas não era aquela bucólica dos árcades, mas uma natureza
real, que proporciona ao homem uma vida de suor e lágrimas, mas sempre repleta da
alegria de estar vivo. É na convivência com a terra que o homem descobre o valor de
todas as formas de vida e aprende a defendê-la, não por questões materiais e sim porque
reconhece a beleza que há nas coisas simples.
Bichos de Miguel Torga
Miguel Torga, pseudônimo literário de Adolfo Correia da Rocha, nasceu em 1907 na
aldeia de São Martinho de Anta, na província de Trás- os – Montes, Localizado no
Nordeste de Portugal.
A escolha do Pseudônimo “Miguel” foi uma homenagem ao escritor espanhol “ Miguel
de Cervantes” autor da famosa obra “ Dom Quixote”. Torga está relacionado a um
arbusto pequeno que fixa suas raízes nas rochas, muito comum em Trás- os – Montes, e
demonstra a ligação autor com a terra.
Em 1920, Torga vem ao Brasil trabalhar na fazendo de seu tio em Minas Gerais. Após
cinco anos retorna pra Portugal.
Miguel Torga participou do grupo inicial da revista “Presença”, publicada em Coimbra
em 1927, que defendia uma literatura viva, livre que se oporia ao academismo da
literatura jornalística:
Em 1927, um grupo de estudantes (José Regio, João Gaspar Simões e
Branquinho da Fonseca) funda, edita e dirige em Coimbra a revista
literária “Presença”. Tendo por subtítulo Folha de Arte e Crítica, o
primeiro número 27 da revista, Branquinho da Fonseca abandona-lhe
a direção, secundado por Miguel Torga (então assinado Adolfo Rocha,
seu verdadeiro nome) e Edmundo de Bettecout que deixaram de
colaborar: na carta que enviaram aos demais diretores da Presença,
datada de 16 de julho de 1930, iniciaram afirmando que a Presença
que se propunha, como folha de arte e crítica, defender o direito que
assiste a cada uma de seguir o seu caminho, começou a contradizer”, e
mais adiante lembram que a “presença concebe mestres e discípulos
com aquela interpretação convencional, em que aos mestres fazem
lições para os que se reputam alunos”. (MOISÉS: 2008, p.361)
Torga, sendo panteísta, tem um sentimento ligado à natureza e ao telurismo – amor a
terra, e estas características são dispostas de maneira significativa em suas obras,
especialmente em “Bichos”, nosso objeto de estudo. Outra característica do autor
presente na obra em questão é a problemática religiosa. Essas características vão ser
tratadas posteriormente.
Segundo MOISÉS: 2010, p.367:
“Miguel Torga é sempre o mesmo homem de pés fincados na
terra transmontada, porque nela espera encontrar a explicação
para a condição humana, imediatamente transformada em sua
mente num problema teológico-existencial, armado ao redor de
indignações-chave, do gênero “quem somos?”.
Bichos é composto por contos, mais especificamente quatorze, e muitas são as
características da sua constituição formal, que atestam esse fato.
Os contos são narrativas breves e geralmente centram-se em um acontecimento ou um
episódio da vida da personagem principal como em “Morgado” em que a narrativa foca
a viagem deste com o seu dono e o fatal encontro de ambos com uma alcateia de lobos.
E mesmo quanto tem que narrar acontecimentos diegéticos ocorridos em longos
períodos como no caso de “Nero”, onde a personagem principal relembra toda sua vida
o autor condensa a narrativa de forma a abranger toda a vida da personagem em poucas
páginas.
O conto é uma narrativa breve; desenrolando uma só incidente
predominante e uma só personagem principal, contém um
assunto cujos detalhes são tão comprimidos e o conjunto do
tratamento tão organizado, que produzem uma só impressão.
(Brander, Matthews apud Goltlib: 1998 pg.60)
A obra apresenta uma característica bastante peculiar, que é a aproximação dos contos
com o texto fabular, Segundo GOTLIB (1995,p.150): “Fábula é uma historia com
personagem, animais, vegetais ou minerais, tem objetivo instrutivo e é muito breve.”
Embora o texto de Torga se aproxime das características da fábula, não se constitui
como uma, pois a instrução não é apresentada de forma direta e esta não é a intenção do
autor.
Os quatorze contos apresentam personagens principais que vivem situações ou
apresentam sentimentos muito ligados a terra e a natureza como, por exemplo, o touro
“Miura” que capturado, levado para longe de sua terra e obrigado a fazer parte de um
espetáculo que acha humilhante, devaneia com a terra natal onera rei e podia ser livre.
Entretanto não é só a ligação com natureza que é o ponto comum entre os contos, há
outros que não podem deixar de ser mencionados. “Bichos” é formado pode contos dos
quais quatro apresentam protagonistas humanos e dez apresentam como figura central
animais. Nesse ponto trava-se uma questão interessante e significativa para a obra, que
seria a utilização da antropomorfização e da zoomorfização, empregadas pelo autor para
a caracterização do perfil psicológico das personagens. Essas características estão
muito presentes na obrar e não são poucos os exemplos que constatam.
O conto “Ramiro”, por exemplo, narra à história de um pastor de ovelhas que depois de
passar vinte anos em Marão, lugar árido e silencioso, ele não consegue usar as palavras
para se expressar por isso assobia:
“Por isso, em vez de fala, usava outra linguagem: um assobio
seco, estridente, instantâneo, que atirava com a mesma violência
à cara dos interlocutores e às reses tresmalhadas. O apito, saído
dos beiços com o ímpeto dum arremesso, entrava nos ouvidos
como um punhal. Quase que fazia sangrar os tímpanos.”
(TORGA: 1940,p.48)
Depreende-se que Ramiro não se expressa como um ser humano, sua forma de
comunicação é mais assemelhada com a dos animais que usam sons para se comunicar.
Mas não é só com o assobio que Ramiro tenta se expressar, apaixonado por Rosa não
sabe manifestar seus sentimentos a não ser pelo olhar. Como podemos observar:
“Quando passava por ela, comia-a com os olhos.
Desgraçadamente, não sabia formular doutra maneira o desejo
que o roía. ”(TORGA: 1940, p. 48)
A zoomorfização esta presente também em “Madalena” e “Senhor Nicolau” que são
personagens planas.
O único conto que tem como personagem principal um humano que não apresenta
características de animais é “Jesus”, sétimo conto do livro que traz a historia de um
menino divinizado, cheio de coragem e inocência, em uma narrativa que faz várias
alusões ao texto Bíblico, caracterizando assim uma intertextualidade.
Essa intertextualidade entre os dois livros que se faz não apenas no conto “Jesus”, mas
no livro como um todo, a começar pelo prefácio iniciado com a seguinte frase: “São
horas de te receber no portaló da minha pequena Arca de Noé” (TORGA 1940, p.3)
A questão religiosa tem seu ápice em “Vicente”, ultimo conto do livro no qual o autor
traz o embate entre a criação e o criador. “Vicente”, o corvo, revolta-se contra Deus,
pois o considera injusto e tirânico. O corvo vence seu instinto de conservação que
considera humilhante. É interessante observar que o ser sem poderes sobrenaturais
consegue a divindade com s sua coragem e força de vontade.
Em Vicente além da questão religiosa, podemos observar um traço que se repetirá com
os demais protagonistas animais: Nero, Morgado, Bambo, Tenório, Cega- Rega,
Ladino, Farrusco e Miura, que é da antropomorfização, em que estes apresentam
pensamentos, emoções e em maior ou menor grau atitudes características dos seres
humanos, como por exemplo, Miura que encurralado e humilhado entrega-se a morte:
“A suprema humilhação de estar ali juntava-se o escárnio de
andar a marrar em sombras. Não. Era preciso ver calmamente.
Que a sua raiva atingisse ao menos o alvo. O espectro doirado lá
estava sempre. Pequenino, com ar de troça, olhava-o como se
olhasse um brinquedo inofensivo.” (TORGA:1940, p 55)
Os contos são todos narrados em terceira pessoa e por meio da onisciência do narrador
os pensamentos e as emoções das personagens nos são desvelados:
Naquela tarde, à hora em que o céu se mostrava mais duro e mais
sinistro, Vicente abriu as asas negras e partiu. Quarenta dias eram já
decorridos desde que, integrado na leva dos escolhidos, dera entrada na
Arca. Mas desde o primeiro instante que todos viram que no seu
espírito não havia paz. Calado e carrancudo, andava de cá para lá
numa agitação contínua, como se aquele grande navio onde o
Senhor guardara a vida fosse um ultraje à criação. (TORGA, :
1983. p.62)
Quanto ao discurso, embora haja a presença do discurso livre em todos os contos e o
discurso indireto esteja presente de forma marcante no conto Jesus. È o discurso
indireto livre que predomina nos contos.
Nas narrativas decorre tanto o tempo cronológico que é aquele em que a historia é
contada em sucessão cronológica, sem retomadas ao passado , que podemos constatar
na maioria dos contos como no caso de Tenório:
“Nascido duma ninhada que a senhora Maria Puga deitou
amorosamente debaixo das asas chocas da Pedrês, em doze de
Janeiro, pelas três da tarde, quando a velhota o viu sair da casca,
(...)” (TORGA :1940, p.34)
Há contos em que apresentam traços de tempo psicológicos, por meio de analepses, as
personagens retomam situações vividas por elas, aspecto que percebemos em Morgado:
“À ceia, o patrão, com cara de poucos amigos, recusara-lhe as
festas desta maneira:- Deixa-te lá de brincadeiras e enche-me
esse bandulho, que amanhã de madrugada, nem que chovam
picaretas... Tal e qual. Meteu a viola no saco, claro, e atirou-se
ao penso como pôde. Mas não sentia vontade. Tinha ainda no
estômago os tojos que despontara à tarde no monte, e andava,
sem saber porquê, de coração apertado. Além disso, aqueles
modos do dono até parece que endureciam o feno. A gente
também vive de boas palavras. E, verdade se diga, gostava do
sujeito. Desde que ele, há seis anos, na feira dos vinte e três, o
distinguira no meio dum regimento de azémolas e lhe dera uma
palmada rija na anca, simpatizara com a sua figura atarracada,
vermelha, a respirar saúde e bonomia. (TORGA: 1940, p. 24)
Torga usa uma linguagem própria do Modernismo, linguagem livre, direta, sem
enfeites e rebuscamentos e ao mesmo tempo complexa, pois nem sempre sua narração
é linear.
Considerações Finais
Assim tem –se em Bichos um retrato fiel do aspecto telúrico de Miguel Torga, nessa
obra ele apresenta um pequeno mundo em que homens e animais vivem em comunhão
com a natureza e dividem com ela suas tristezas e alegrias. Para Torga o lugar onde o
homem consegue ser feliz e descobrir sua essência é na natureza. A sociedade oprime o
que há de belo no sentimento humano, como percebe-se em Bambo, todos vivem
alienados, trabalhando o dia inteiro e descansando a noite, sem pensar que há outras
coisas mais importantes para serem vivenciadas.
‘’ Para todos os habitantes de Vilarinho, sem exceção, as noites
eram noites – escuridão apenas. E os dias pior ainda, apesar da
claridade. Ricos e pobres nem no brilho do sol reparavam.
Comiam, bebiam e cavavam leiras, numa resignação de
condenados (...) E a vida, como um fruto, estava cheia de
doçura.Mas fora preciso, para o saber, que Bambo
aparecesse...’’ (Bambo, p16)
Portanto, para Miguel Torga só o convívio com a natureza é capaz de revelar ao homem
sua verdadeira essência. Não é gratuitamente que Tio Arruda é ridicularizado pela
amizade com um sapo em frente à igreja. Torga também critica por meio dessa cena a
religião, ou como as pessoas vivenciam a religião, todas essas convenções que na
verdade não aproximam o homem de Deus, com a leitura dos contos percebe-se como
para o autor Deus está integrado com a natureza, com a terra, fazendo parte dela.
Tive que ler nos tempos de estudante...
ResponderExcluirIsabel Sá
http://brilhos-da-moda.blogspot.pt