Ciranda de Pedra / Lygia Fagundes Telles

Sempre me pergunto se já nascemos melancólicos ou é uma característica que surge depois de algum trauma. Eu já disse mil vezes que eu amo e entendo as almas melancólicas, problemáticas. 
Alguns personagens de Lygia são assim,os que eu mais gosto. Ciranda de pedra é um livro assim, a solidão de Virgínia é assim. Nada mais triste que estar sozinha em qualquer ambiente. Para algumas pessoas, o mundo é uma ciranda de pedra, não adianta tentar entrar, tentar fazer parte. Virgínia só é feliz na sua imaginação, quando está em casa com a mãe perturbada imagina como seria bom estar na casa do pai com as irmãs Bruna é Otávia, com o vizinho Conrado e os outros, quando está na casa de Natércio sente-se isolada, principalmente depois que a mãe está morta e ela descobre que o padrasto é seu verdadeiro pai.
Na infância de Virgínia, há a presença de Luciana, essa não é a história de Luciana, mas eu quero falar dela também. Eu simpatizo muito com ela. Luciana é a empregada de Daniel, verdadeiro pai de Virgínia, e apaixonada por ele. Ela é mestiça, mulata, e acredita que esse é o motivo de não ser amada. Ela confessa que tentou disfarçar seus traços negros para que um dia Daniel pudesse amá-la e andar com ela sem envergonhar-se. Mas Daniel ama  Laura, mãe de Virgínia,  talvez não por ela ser branca, mas por eles terem uma história tão forte que o faz preferir o suicídio a viver sem ela. Luciana amou e serviu Daniel, e até Virgínia e Laura, mesmo querendo odiá-las por terem o amor que  ela queria.
Eu gostaria de saber como terminou Luciana, mas não é a história dela. E eu fico agradecida a Lygia por esse jeito de contar uma história mesmo sem parecer que está contando. Temos um registro do contraste entre a vida de duas mulheres que são tratadas de formas tão diferentes pela sociedade, por suas origens e cor.Pelo pensamento de Virgínia temos o registro do que as pessoas pensavam sobre ser negro e o livro foi publicado em 1954.

E pensou nas flores dos jardins do céu, elas deviam ser assim também, tão delicadas... Todas as manhãs eram regadas pelos anjos louros que passeavam de mãos dadas, em bandos. Todos louros? É, todos louros, até Isabel que morrera preta mas que no céu virou branca, muito mais bonito anjos só brancos, podiam soltar os cabelos até os ombros, como Otávia. Ser preto era triste e no céu só tinha que ter alegria. (Virgínia)


Voltando à Virgínia, quando ela finalmente vai morar com Natercio é que descobre que Daniel é seu pai biológico, que ele a amava tanto que preferiu renunciar para que ela vivesse com conforto e na companhia das irmãs, no entanto tudo que ela encontra é indiferença e frieza. Tudo continua impenetrável. Ela pede para ficar em um colégio interno e não sai de lá nem nas férias. Eu sempre achei que a tristeza dos ricos é muito insignificante, você sempre é menos triste amparada por dinheiro, bons lugares para morar e estudar, oportunidade de viajar quando bem entende. 
Na maioria desses livros que leio há histórias de pessoas que podem curtir suas depressões, seus problemas internos, traumas, não precisam trabalhar, podem viver de herança ou fazer arte sem pretender vender. Mas Lygia é tão boa em expressar os sentimentos que entramos na mente de Virgínia e entendemos o seu desespero por aceitação. Nem na escola ela é completamente aceita por ser filha de pais separados. Os personagens de Lygia são tão reais, com seus problemas, defeitos e qualidades que é impossível não se identificar ou não se sentir na presença viva desse ser de papel.
Ela passa anos para entender aquelas pessoas, Natércio, Bruna e Otávia, os vizinhos Afonso, Letícia e Conrado, a quem ela sempre amou e sempre pensou que amava Otávia, cada um tem seus próprios dramas, nem mesmo o laço entre eles é algo bom para que ela pudesse desejar tanto fazer parte.
O problema com Virgínia, e com os sonhadores em geral, é que a realidade nunca é tão boa quanto o que imaginaram, não havia união, felicidade, harmonia, todo o tempo em que ela passou sonhando em fazer parte dessa ciranda foi perdido.

Frases:


Ouça, Virgínia, é preciso amar o inútil. Criar pombos sem pensar

em comê-los, plantar roseiras sem pensar em colher as rosas, escrever sem pensar em publicar, fazer coisas assim, sem esperar nada em troca. A distância mais curta entre dois pontos pode ser a linha reta, mas é nos caminhos curvos que se encontram as melhores coisas. A música — acrescentou, detendo-se ao ouvir os sons distantes de um piano num exercício ingênuo. — Este céu que nem promete chuva — prosseguiu. — Aquela estrelinha que está nascendo ali... Está vendo aquela estrelinha? Há milênios não tem feito nada, não guiou os Reis Magos, nem os pastores, nem os marinheiros perdidos. Não faz nada. Apenas brilha. Ninguém repara
nela porque é uma estrela inútil. Pois é preciso amar o inútil porque no inútil está a Beleza. No inútil também está Deus. (Conrado)


 “Quero entrar na roda também!”, exclamou ela apertando as mãos entrelaçadas dos anões mais próximos. Desapontou-se com a resistência dos dedos de pedra. “Não posso entrar? Não posso?” (Virgínia)


“não fique assim com essa mentalidade de donzela folhetinesca, não separe com tanta precisão os heróis dos vilões, cada qual de um lado, tudo muito bonitinho como nas experiências de química. Não há gente completamente boa nem gente completamente má, está tudo misturado e a separação é impossível. O mal está no próprio gênero humano, ninguém presta. Às vezes a gente melhora.

Mas passa.” (Otávia)

 “Não me peçam nunca fidelidade. Por que fidelidade se todos mudam tanto e tão rapidamente? Mas se nem a mim mesma consigo ser fiel. Seria bem divertido fazer uma pilha dessas Otávias todas tão contraditórias e tão desiguais, que não me reconheço em nenhuma delas” (Otávia)

“Seu cego! Eu te amo, há dois mil anos que te amo, será que ainda não descobriu isso? Eu te amo, vamos, diga o que quiser, mas pelo amor de Deus, diga alguma coisa!”. (Virgínia)

Um dia qualquer, no meio de um pensamento, de uma palavra, você descobrirá de repente esta coisa extraordinária: cresci! O que não vai impedir que o acaso ou Deus, dê a isto o nome que quiser, de vez em quando a governe como uma casca de noz no meio do mar. Mas reagirá de modo diferente, está compreendendo? (Letícia)


 Então você ainda gosta dele? Terá que esquecer, Virgínia. Amar a pessoa errada não é das melhores coisas que nos podem acontecer e acontece com tanta frequência. Dante se esqueceu desse círculo no seu inferno, o dos rejeitados. (Letícia)

Hei de me guiar por alguma daquelas estrelas que me dirá onde devo descer. — E noutro tom: — Ah, Conrado, ao menos isto eu quero, já que é preciso aceitar a vida, que seja então corajosamente. (Virgínia)

Eu gosto de história, gosto de quase tudo que leio, mas de poucos livros posso dizer que foi uma verdadeira companhia, os sonhos bobos, os devaneios, os raros momentos de coragem decisiva, tudo em Ciranda de Pedra vai me deixar saudades.

— Estamos sempre dizendo adeus, não, Virgínia?


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